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A casa de fogo, por Diogenes Fagner

A CASA DE FOGO

Eu não participo mais do cotidiano desta cidade, pensou Misael em dezembro, enquanto corria no Parque Ecológico.

Ele não soubera que uma residência da rua do parque, construída há dois anos, o mesmo tempo de seu novo trabalho na Paraíba, tinha recebido um nome da cultura local.

Agora era A Casa de Fogo, por causa de sua intensa iluminação amarela no período natalino.

Esta informação inesperada lhe chegou, naquele começo de noite, na voz de um menino gordinho, assim: “Mãe, mãe, olha a casa de fogo”.

Naquele momento Misael, que é psicanalista, diminuiu o ritmo da corrida para poder elaborar um sentimento.

Ele era de que lugar? Odiava o calor e as pessoas de Catolé do Rocha, cidade onde trabalhava. Ao mesmo tempo também não estava mais integrado ao cotidiano de sua cidade natal.

Santa Cruz, há tempos, fabrica emigrantes como ele. Não há empregos o suficiente e o que resta para muitos, como é o caso de Misael, é partir e se tornar um cidadão passageiro, com suas raízes como que suspensas sobre as estradas.

Após meia hora de corrida, ao passar por jovens aparentemente evangélicos que se exercitavam no centro do parque juntos a um casal de lésbicas, Misael vinculou aquele sentimento despertado inicialmente pela voz do menino ao problema do contraste entre os novos modos de vida.

“Não tenho mais lugar ou, na verdade, sinto me ainda sem raízes numa sociedade santacruzense em transformação?”

O seu município, como todo o Brasil de Bolsonaro, padece atualmente de uma grave crise social e política.

Ele pôde enxergar este fato claramente nas turbulências de novembro passado, quando Santa Cruz ficou duas semanas sem governantes e, numa noite histórica, estudantes e religiosos se enfrentaram na Câmara de Vereadores por causa da chamada “Ideologia de Gênero.

“Santa Cruz está se transformando. É isso. Talvez ninguém, não apenas eu, tenha mais um lugar fixo”, disse o psicanalista limpando o suor da testa.

***
Às 19 horas, exercício concluído, Misael parou um instante para admirar mais de perto a Casa de Fogo, que assim descrita lhe lembrava as tradicionais residências inglesas dos livros de Virginia Wolf.

Minutos depois, uma mulher passou correndo por ele e, percebendo seu deslumbramento, lhe lançou um sorriso e estas palavras “parece a Europa, não é?”. Ao que ele respondeu, sem jeito e surpreso “Sim, sim, parece”.

Diogenes Fagner. 21/12/2018. 

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