Falta de estrutura e preconceito são comuns no dia a dia das pessoas com deficiência
Aos 13 anos, na passagem da infância para a adolescência, um disparo de arma de fogo mudou para sempre a vida de Thainá da Silva Lourenço. Sete anos depois, ela carrega consigo as sequelas da lesão medular sofrida na primeira vértebra torácica, um pouco abaixo do pescoço, que a deixou sem sensibilidade e movimentos ordenados a partir desse ponto. Thainá é uma das mais de 303 mil pessoas que vivem com algum tipo de deficiência (visual, auditiva, motora, mental e/ou intelectual) no Rio Grande do Norte, conforme dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O dia 21 de setembro é dedicado, em todo o Brasil, à Luta da Pessoa com Deficiência. Falta de estrutura e preconceito são comuns no dia a dia dessa população.
“Eu sofri um tiro e, devido a esse tiro, eu sofri lesão medular. Vai fazer sete anos. Eu andava, não precisava tanto de ajuda de outras pessoas”, declara Thainá da Silva Lourenço. Ela está inserida nas estatísticas do IBGE que apontam uma ocorrência maior das deficiências entre as mulheres no Rio Grande do Norte. Conforme a Pesquisa Nacional de Saúde (ano base 2019), existem aproximadamente 180 mil mulheres com deficiência no Estado, contra 122 mil homens. Há quatro anos, Thainá faz tratamento nas clínicas do Instituto Santos Dumont (ISD), em Macaíba. Através do Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi (Anita), ela recebe atendimento multiprofissional com fisioterapeuta, ginecologista, psicóloga, urologista, neurologista e, mais recentemente, obstetra.
De acordo com a preceptora multiprofissional fisioterapeuta do ISD, Heloísa Britto, o tiro sofrido por Thainá da Silva Lourenço provocou uma tetraparesia, que é uma paralisia incompleta dos membros inferiores ou superiores. “A bala atravessou por uma brecha no portão e atingiu o pescoço. Traqueia, esôfago e garganta ficaram destruídos”, relembra a mãe, Telma da Silva. Por causa da lesão medular, Thainá ficou com o intestino e a bexiga neurogênicos, isto é, passou a apresentar alterações no funcionamento da bexiga e no intestino decorrentes de disfunções neurológicas.
“O atestado de óbito dela chegou a ser preenchido. Os médicos não acreditavam que ela fosse sobreviver. Um deles perguntou se eu sabia rezar. Ele disse que era para eu entregar nas mãos de Deus, pois a situação era muito grave. Num determinado momento, ela teve uma certidão de nascimento e de óbito. Só faltava a assinatura do médico”, complementa a mãe enquanto assiste a filha em mais uma sessão de fisioterapia no ISD. Thainá sofreu o tiro enquanto “brincava” de roleta-russa com dois amigos da mesma faixa etária. Ela passou dois meses internada, dos quais 15 em uma unidade de terapia intensiva e 22, entubada.
Dificuldades
Encarar uma sociedade que não é preparada, assim como uma cidade cheia de obstáculos aos cadeirantes é, segundo Thainá, o seu maior desafio enquanto pessoa com deficiência. Essas questões, porém, não a desanimam. Ela defende que a população em geral deve ter mais acesso às informações sobre pessoas com deficiências para que barreiras sociais e arquitetônicas sejam quebradas. “Tem o preconceito, tem as dificuldades. Porque em tudo eu preciso de uma ajuda e tenho que estar pedindo. Mas, eu acho que hoje eu sou mais feliz que antes. Eu sou livre, posso ser eu mesma. É não ligar para o que os outros dizem e viver a vida como deve ser vivida”, afirma a jovem que criou uma conta no Instagram (@tata.debochada), para contar um pouco da sua jornada e influenciar positivamente outras pessoas na mesma situação a não desistirem e a buscarem ajuda profissional.
Conforme Telma da Silva, o simples ato de ir e vir é altamente complexo ao cadeirante. Ela destaca que as cidades não estão preparadas para esse público, pois as calçadas são desniveladas, quase não existem vagas de estacionamento e, o pior: a falta de sensibilidade e educação das pessoas não deficientes. “Há lugares em que a cadeira de rodas não passa pela porta. É complicado em tudo. As pessoas são mal educadas, os guardas de trânsito são despreparados para atender essas pessoas, os motoristas não respeitam a faixa de pedestre e os cadeirantes”, elenca a mãe de Thainá.
Além das dificuldades estruturais, Telma da Silva destaca que os cadeirantes enfrentam preconceitos em diversos aspectos. O termo “aleijado” é o mais comum entre os pejorativos usados para classificar as pessoas com deficiência. “Eu parei a minha vida para cuidar da minha filha. Em muitos momentos, ela entrou em depressão por causa da cadeira de rodas, dos olhares das outras pessoas. A gente saía para lanchar e ela não descia do carro, comia ali mesmo. Ela tinha vergonha do que os outros pensavam”, relembra Telma.
Para Heloísa Britto, é necessário mudar o pensamento coletivo para que as pessoas com deficiência sejam efetivamente integradas à sociedade. “Nós que trabalhamos com reabilitação física, reconhecemos e valorizamos a participação social. A gente reabilita um indivíduo após uma lesão, por exemplo, ou habilita um indivíduo que tenha uma lesão congênita para que ele tenha uma vida social possível. Existe uma expressão mais nova chamada capacitismo, que é o pouco reconhecimento das pessoas em relação às suas capacidades. As pessoas com deficiência têm potencialidades. O capacitismo é olhar para elas e achar que elas não são capazes. É olhar para um cadeirante e julgá-lo como “coitado”. É preciso olhar para essas pessoas e enxergar nelas, autonomia, capacidade de fazer”, sublinha.
Vida
Em menos de um mês, a vida de Thainá passará por uma nova mudança: o nascimento do primeiro filho. Áylan nascerá, de parto cesárea, em outubro. “Quando me veem perguntam se realmente eu estou grávida, como eu fiz… No começo, diziam que eu não iria aguentar, que não tinha como. Se eu fosse prosseguir com a gestação, o bebê iria nascer prematuro. Só que não é do jeito que as pessoas pensam. É tanto que eu já estou com oito meses e o bebê, com quase três quilos”.
A fisioterapeuta Heloísa Britto, que acompanha a reabilitação de Thainá, explica que a lesão medular em nada interfere no ciclo ovariano, e a mulher, sendo fértil, consegue engravidar sem problemas mesmo sendo uma pessoa com deficiência. “O normal é a gente achar que não pode, mas pode sim. A deficiência física é um tabu, assim como a sexualidade ainda é um tabu. Quando juntamos esses dois tabus, tudo piora”, alerta.
Alerta
O coordenador de Centro Especializado em Reabilitação (CER IV), do Instituto Santos Dumont, o neurocirurgião Hougelle Simplício, alerta para o risco de que qualquer um pode ser uma pessoa com deficiência, não importa a idade. “Todos nós teremos alguma deficiência em alguma fase da vida. Então, olhamos para nós com 20, 30, 40, 50 anos, sem nenhum problema de saúde, sem deficiência. Isso é verdade hoje, mas teremos alguma deficiência no futuro. Uma dificuldade de locomoção própria do envelhecimento, uma diminuição da audição, diminuição da visão, diminuição intelectual que é própria do envelhecimento… Se a gente aprender a cuidar melhor das pessoas que têm as deficiências mais graves, o próximo passo será cuidar melhor das nossas deficiências e limitações próprias do envelhecimento, e isso interessa a todo mundo, pois todos irão chegar a esse ponto”, alerta.
Para Hougelle Simplício, a mudança do comportamento da sociedade em geral no que diz respeito à população com deficiência é possível. “A outra forma é a gente, o poder público, a sociedade civil abrir espaços para que seja possível que essas pessoas convivam em espaços públicos: para o cadeirante se locomover de forma autônoma em calçadas, descer na rua, andar de carro, de transporte público…”, lista.
Legislação
A data foi instituída pela Lei nº 11.133/2005, com o objetivo de conscientizar a população de que as pessoas com deficiência devem ter seus direitos respeitados.
Pessoa com deficiência é a que possui limitação ou incapacidade para o desempenho de atividades e requer atenção integral que compreenda ações de promoção, prevenção, assistência, reabilitação e manutenção da saúde.
As deficiências se enquadram nas seguintes categorias:
– deficiência física;
– deficiência visual;
– deficiência auditiva;
– deficiência mental;
– deficiência múltipla.
No Brasil, a Lei Brasileira de Inclusão de Pessoa com Deficiência, Lei 13.146/2015, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, incorporou os princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, realizada em 2006, pela Organização das Nações Unidas (ONU) e ratificada pelo país em 2008.
A LBI aborda itens como discriminação, atendimento prioritário, direito à reabilitação e acessibilidade. A Lei estabelece, também, que pessoas com deficiência têm autorização de saque do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) para aquisição de próteses e órteses.
No campo da saúde, a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência estabelece suas principais diretrizes:
– promoção da qualidade de vida das pessoas com deficiência;
– assistência integral à saúde da pessoa com deficiência;
– prevenção de deficiências;
– ampliação e fortalecimento dos mecanismos de informação;
– organização e funcionamento dos serviços de atenção à pessoa com deficiência;
– capacitação de recursos humanos.
A atenção integral à saúde, destinada à pessoa com deficiência, pressupõe uma assistência específica à sua condição, ou seja, serviços estritamente ligados à sua deficiência, além de assistência a doenças e agravos comuns a qualquer cidadão.
O atendimento é prestado pelos profissionais das Equipes de Saúde da Família (médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de saúde, dentistas e auxiliares de consultório dentário) na unidade de saúde ou nos domicílios. É importante procurar uma unidade de saúde próxima à moradia. Neste local, o usuário terá acesso à avaliação do seu estado geral de saúde, podendo ser encaminhado a um serviço que ofereça avaliação funcional e de reabilitação, e, quando necessário, à aquisição de órteses e próteses.
Fonte: Ministério da Saúde